sábado, 15 de dezembro de 2012

O caminhão de gás *


Era manhã.

Uma manhã de inverso em pleno verão. Talvez por isso diferente das outras…

O ar frio sucumbia em memórias esbravejando um frescor excessivo. O céu se esforçava para ser menos cinza e os pássaros menos solitários em cada liberdade. O tempo era descontrole de banalidades excessivas e a rogativa, minha lente de aumento do céu, era um pedido para seus ponteiros serem menos implacáveis em cada ato.

Os ecos de um “mundo novo” ainda habitavam meus ouvidos. Estava pregado à cama como os sonhos que embalam um futuro melhor, banal como qualquer slogan de televisão, mas como uma gota de esperança que nascia e eu precisava agarrar. A esperança cabe na mão daqueles que são convictos.
O carrossel das necessidades me abriu um sorriso pálido, provocativo: eu sabia que tinha fome, ele como um mantra me perguntava de quê.

Via na rua os restos dos rojões que anunciavam os festejos de um ano novo e as promessas e esperanças vinham e voltavam, assim como oferendas, como tudo aquilo que vem do mar.
De repente, abro os olhos e acordo. Desta vez saindo da cama.

Ao fundo, dobrando a esquina, avistei mais pela música do que pela forma: era o caminhão do gás.
Era dele a esperança que me restava. Despertavam lembranças e toda a empolgação, toda lembrança, história, dádiva, lagrimas…

Estava sozinho e precisava correr! Sentia fome e sabia que era preciso mais do que de comida para alimentar a nudez de todo recomeço.

Corri até o portão, fiz um aceno ainda semi desperto. O caminhão parou.
Com um bom dia discreto, de quem não escovou os dentes ainda, escolhi o botijão menos bonito. Preferi o azul ao verde.  Fiz questão de escolher o enferrujado com dois amassados nas laterais, porque sabia que ninguém mais escolheria aquele.

A música do gás ainda tocava e agora mais alto porque eu estava embaixo da caixa de som. Senti um incômodo, eram as meias ainda molhadas da umidade do asfalto. Por mais que haja uma diferença entre o nome que apareça no crachá e o que você realmente seja, agradeci ao Senhor Miguel (o senhor não estava no crachá, apenas o primeiro nome e alguns números) e fui embora sem conferir o troco.

Soltando um pouco de fumaça, o caminhão foi embora ao dobrar a esquina.

O coração seguia ao compasso da espera nebulosa.
A responsabilidade era só minha agora. O que fazer quando tudo que você pode pedir já é seu?
O gás encontrou seu lugar, saindo de si. O desafio de ser mais leve transfigurou paixões.

Enquanto isso, eu olhava a dança da chama enquanto esquentava no fogão o café de ontem. O fogo que sempre encantou a humanidade agora me abre dúvidas:
Fome eu tinha, só não sabia de quê…




Este é um dos meu primeiros textos "em prosa"...
Foi publicado originalmente na Revista Cultural Nota Independente.

 Quem quiser confirar "no original" poderá ver também a bela ilustração do Bruno Grossi. Basta clicar aqui.

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