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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O mistério da goiabeira



Naquela manhã não fiz o café. Apenas troquei a água do bebedouro para o beija-flor flutuar seus encantos. Na mesa, apenas o tampo de vidro e o IPVA aberto: “ Senhor caixa: este aviso é meramente informativo NÃO AUTENTICAR”.  São esses hábitos que me constrangem e me jogam no tempo. Na mesa não havia pão, café, frutas...Apenas o lembrete de pagar, um exercício contra a aparição da simplicidade.  Avisos como este me deixam em dúvidas constantes entre hábitos humanos ou lampejos de uma simples aparição em corpo.
Da vida se leva o que não se autentica. O hoje e o amanhã serão apenas opções.
Compreendo a delicadeza dessas questões e quanto mais ao Norte se avança a longo dos anos, mais específica é sua sede: de água, de água gelada, de mineral, de nuvem...
Longe do alcance da cozinha uma goiabeira no quintal sorri. Avancei até lá e sob seus galhos surgiu um terraço de folhas e palhas delicadamente trançadas para se vencer o horizonte  daqueles valores letárgicos.  A pulsação de seu coração irradia pequenos seres animados que flutuam e inflam notas de coragem e peregrinação. Adormeci.  O prolongamento de seus galhos acalmou meu impulso de partir, porém sem severidade.  Uma voz que brotava do solo e irradiava consolação disse em sentido íntimo: “ A essência do medo está no fato do homem ser um animal fugidio”.
Não consigo lembrar-me desta goiabeira em meu quintal. Entretanto, era uma goiabeira que prodigalizava outros frutos com outras histórias e contornos. Suas folhas translúcidas sopravam e perfumavam o ar como um ritual de pureza. 
Já não era manhã, ou noite. Tarde ou dia. Era apenas quintal. Os pequenos seres, que chamei de Argos, acabaram por inaugurar um novo vazio em que eu pudesse me projetar. Eu inaugurava perigos. Estava estampado em meu rosto o tentador poder da desistência e a tentação do retrocesso.  Sabia que não poderia voltar e isso me fortalecia. A medida que estas decisões eram tratadas eu era deslocado da realidade de onde apoiava os pés.  Um dos Argos, talvez se antecipando às minhas preocupações, disse em tom irônico:
- Bagagem? Leve apenas o que puder imaginar.
Se a certeza da volta era algo que eu não tinha, intuía que caso voltasse muito seria diferente. Eu sabia que não seriam apenas promessas, mas uma nova velocidade de acreditar.
Um silêncio universal tomou conta do meu coração.  Em companhia dos Argos, estávamos em um cemitério de relógios.  Lá, um galo afirmava ser o criador dos desertos e que poderia, caso quisesse – e ele afirmava ter razões para isso, transformar a vida dos homens em grãos de mostarda e depois em pó.  O galo dizia que muito das ilusões oficializadas em vida, vão parar ali depois.  
- Se você é um daqueles que está com o pensamento onde não está o corpo, posso eliminá-lo agora mesmo, disse  este ser enigmático que tinha olhos de quebrar datas.
Compreendendo o movimento da vida, o galo e um dos Argos disseram juntos, amenizando minha preocupação aparente:
-  A vida se renova na sombra!
Compreendi que a passagem pelo cemitério seria essencial, já que depois de algum tempo tive conhecimento de que antes de voltar para casa, seria necessário uma pausa e um regresso. Em um instante, compreendi o alerta do galo e o porquê estava naquele lugar.  Onde estive com a minha vida por todo este tempo? Realmente, os acontecimentos me levaram a estar com o pensamento muito além do meu corpo. Sempre fugidio do tempo, nunca estava realmente onde me encontrara.  
O tempo era marcado por uma experiência interna. Sentia que era preciso voltar, e antes de concluir o pensamento os Argos apareceram, juntamente com o galo. Como um presente sincero e um abraço afetuoso, recebi daquele ilustre guardião do cemitério um livro cujo título era “ Os símios e os homens que costuravam elefantes com memórias”.  Disse-me ele para manusear as páginas com cuidado, pois se tratava de um livro de tempos mitológicos e a minha maior façanha seria descobrir como aplicar os conhecimentos ali enunciados e transformar o cotidiano em grandes acontecimentos. Esta seria, segundo ele, a fórmula para a maior revolução de todas.
Meu pensamento era preguiçoso, mas já sabia onde estava. A fila andava lentamente e ao colocar a mão no bolso esquerdo, senti o IPVA no bolso, estava no banco. Ao retirá-lo para conferência, um papel caiu ao chão. Nele estava escrito:  “ Grandes revoluções começam com bom dia e um riso sincero, honesto e simples”.
A companhia tocou alto. Era meu número no visor. O caixa disse bom dia e estendeu a mão, para formalizar um prestativo cumprimento.  Eu apenas entreguei o IPVA.  Ao finalizar a transação ele me desejou um bom dia alegre. Eu continuei calado com as mãos conferindo o troco.
Na saída do banco, ao lado da calçada, uma árvore estava com as folhas no chão e praticamente deitada ao solo, devastada.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Página 1



Havia pensado em uma história simples, previsível e consumível. Era o que eu fazia de melhor. Com o coração flutuante, só restava pensar em histórias para preenchê-las de amor e fantasia.  Poderia ser a história de um casal  qualquer. Viveriam algum tempo separados pelo flagelo da guerra, fosse nas Cruzadas ou na Guerra das Malvinas, e depois viveriam perseguindo o viver ao sabor de suas próprias lembranças.  Precisava escrever, havia prazos para isso.  O mundo profissionalizante é feito de prazos e criatividades espremidas.  Qualquer história  que me desse mais uma semana de alívio, fosse ela de monstros ou de jardins.  Eu me vendi a isso, era o que me contentava.

O sentimento mais próximo de não existir é o de não ter idéias.  Fluía entre uma idéia e outra com o lápis batendo na mesa e a mente em algum lugar, certamente não comprometida com o prazo que já estava se esgotando.  Ainda lembro-me do bilhete mal educado colocado sobre a mesa: “No mundo profissional as pessoas cumprem prazos. Vou esperar o material pronto até sexta-feira. Não escreva contos, quero um romance.” O nome “Hélio” estava escrito com caneta vermelha e o  restante do texto em caneta preta, não entendi o porquê.  Hélio era um grande amigo de meu pai, éramos colegas até ele se tornar chefe.  Antes, compartilhávamos  juntos o café da manhã e em cada dia da semana, cada um da redação era responsável por trazer o pão, o queijo e o salame. Nas proximidades do dia 30 o café da manhã sempre tinha bolo e alguns brigadeiros, esticávamos o momento para celebrar os aniversariantes do mês.  Entretanto, ao exigir cada vez mais de todos os fotógrafos, editores e jornalistas, os momentos de interação ainda aconteciam, porém, cada vez menos.

Para mim, tudo mudou quando Hélio assumiu a chefia. Não conseguia entender a relação dos fatos, mas este também foi o momento em que não consegui mais produzir na escala esperada pela redação e no mesmo volume que todos faziam com aparente normalidade. Outras coincidências factuais me atordoavam: já estava para completar 6 anos na mesma função, alimentando a frivolidade que é acordar cedo para realizar a mesma tarefa por cerca de 2190 dias, não contando os domingos, feriados e apenas duas férias fruídas, já que a terceira estava para vencer e o Hélio era convincente a fazer acreditar de que eu era insubstituível em minha função. 

Das Artes, a mais sublime certamente é o encontro de almas. É um prolongamento de vida que faz abrir os olhos para o mistério de dois pensamentos habitarem juntos, um mesmo instante, por um mesmo ideal utópico comum. Não quero mais que a síntese de uma consciência plural a me mostrar que na mutilação existente entre o “bem e o mal” pode existir a Arte e nisso há elementos substanciais o suficiente para afogar o determinismo em um oceano previsível e muito próximo da calmaria de uma zona abissal. Por ser um caminho além da percepção, é preciso afirmar: o homem aberto à Arte é caminho.
Não quero a sorte do protagonista da novela. Eu quero é vida real, sem espetáculos. Sentimento é coisa séria. Aliás, lembro-me que essa foi uma das primeiras palavras que troquei com ela. Conhecê-la foi como um tiro de canhão no peito. Importa na verdade é descobrir quantas pessoas você pode conhecer realmente, em menos de um segundo, sem precisar dizer “oi”.  

O melhor de tudo é que não se tratava do romance recém inaugurado que não conseguia sair da página 1.  Para meu alívio, aquilo não era ficção, e sim o fluxo da minha vida com silêncio, esperança e sem lógica. Os prazos se esgotavam, eu sabia, mas algo se transformava em mim lentamente. Meu declínio profissional continuava gradativo.  Algo em mim tinha outros anseios, mas onde começaria a primavera da minha ilusão? Precisava da ilusão verdadeira, aquela que me faria romper com o cotidiano de apertar a mão de todos, e esperar até sexta-feira para confidenciar à felicidade o quanto ela é passageira.
Foi quando despertei e meu tempo estava entregue a ela. Ela acolheu meu destino com olhos e boca e me levou até a liberdade que me entregaria. Aquilo que eu não conhecia seria meu, talvez com pouco mais de tempo pudesse ser nosso.  O cotidiano não orquestrava nada mais, além da espera.

8 horas diárias e 7 dias durante a semana interminável  me devoravam sem que eu escrevesse uma linha a mais . Entretanto, seu nome ainda era um passarinho a voar  e a devolver música ao ruído solitário em que viviam os homens, inclusive eu.  Sabia que viveria com ela um amor que não era de flores. Talvez um amor de estrelas e outros mundos, já que ela tinha serenata nas palavras e fazia ser domingo toda vez que sorria.
Permanecia na página um.  Percebi que as idéias não fugiam de mim, elas sabiam o caminho que  eu deveria percorrer e me arrastariam, se preciso fosse para, para um abrigo longe do meu dia-a-dia colérico, de face sempre igual.  
- Se o trabalho é coisa séria, o sentimento também é.  Lembro-me da primeira vez que a conheci, enquanto ela confidenciava ao telefone esta verdade para alguém. Seu perfume era a rosa dos ventos da única convicção que tinha em mente: por ela, substituiria todo determinismo  pela Lei dos nossos encontros. Ela vestia calça jeans e camiseta branca, com uma ecobag  timidamente caída pelo ombro esquerdo. Assim eram os dizeres da bolsa, provavelmente bordados à mão: “é possível viver em sonho o truque da realidade”. Suas mãos bordavam toda caligrafia do encanto.  Já amava sem  conhecê-la, confidenciei sem demora a mim mesmo.   Estávamos na fila da mercearia, com o destino ainda desconhecido entre nós. Meu único compromisso era o de comprar os pães de queijo e o refrigerante para celebrar com a redação os aniversariantes do mês, uma das poucas festas que a redação toda ainda poderia se reunir.
Quantas coisas damos importância e no final nos tiram a vida? Não tive tempo para pensar no oposto dessa sentença.   Após uma semana, encontrei o bilhete do Hélio no fundo da gaveta.  Às 7 da manhã ouvi Hélio chegando após algumas pigarreadas pelo corredor da redação. Com o cigarro apertado no canto da boca, fez um aceno com a cabeça. Seus olhos devoravam minha calma.

Uma angústia momentânea pairou sobre meus pensamentos, não tivesse eu sido arrastado pela lembrança da noite anterior, que  havia começado ao meio dia no parque. Comum, não fosse ela me ensinar a olhar a vida com olhos de inventar realidades.  Entre tantas confissões, revelou-me  que as árvores tem sangue azul do tronco às copas e que durante a noite, liberam do trabalho afortunado formigas e caracóis para o mistério da cidade em que os carros dormem. Lembrei também da possibilidade de segurar uma lagarta ( apenas as que não tem pelos) por 3 segundos para descobrir a essência das borboletas.  Ela me ensinou que ter certeza é sentir.

Retornei ao mundo das angústias. Lembrei do tempo e do prazo. Lembrei de uma vida não vivida.
Meu compromisso não era mais ser um fiel intérprete do cotidiano. Pela primeira vez dizia EU sem contradição, nem boatos. Liberdade significava ter me livrado do perigo de ser sempre o mesmo.  
Pela necessidade de amar, amei o melhor de mim, nela. Pela necessidade eu trabalhei inventando mentiras.  Se hoje sei que a vida brota onde o sol bate, sei que o amor é um pintor de lembranças  e isso bastaria se eu tivesse conseguido agradecê-la.  

Ela daria importância?


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Capítulo reinventado




A morte tinha sido estagnação de momentos.  Silêncio da saudade que finca no corpo  uma estação de silêncios. A ausência da memória era a morte para mim.
Lembrei que sentei ofegante na calçada, à espera de um novo tempo-presente. As lembranças eram criminosas, intrusas. Não via de onde falava, senão pelo pensamento que me invadia. Eu era a vigília do que falava por mim quando fui obrigado a estar onde o pensamento se fazia o contorno do sofrimento, o sofrimento de um tempo que não passava.  O olhar perpetuado era então visto de longe: carros parados no instante, fugidios e eternamente cinzas, ruas brandas e eternamente estreitas. Ruas imóveis, não levam e não desabrocham olhares. Tudo era a força de uma pedra que cai somado com a força da pedra que continuava caindo e caindo...
Meu porto de luz foi a calçada e a indagação: Qual é o caminho que a morte leva?
Lembrei de Rodin e da sabedoria que cresce a partir do bronze. Naquele átimo de segundo eu trocaria qualquer sabedoria pelo conforto delineado a partir de um suposto-presente, tempo agudo. 
O eterno-presente desenrolou-se até mim pela assertiva: o peso da vida é o desespero silencioso.
Deveria chegar em casa, abrir o chuveiro e contar memórias enquanto a água caia e depois secar  tudo com a toalha para cair na cama e juntar o avesso de tudo  para virar sonho.  Coisas óbvias?  Tinha percorrido o caminho de forma digital. As pernas coladas ao tronco se tornaram analfabetas do primeiro passo. A força escorria (inerte) e somente o pensamento e as palavras-intrusas sustentavam meu corpo.  

                                                                              (Tensão)
 A mentira da vida é acreditar que tudo pode ser resolvido com planejamento e burocracia.  O planejamento ajuda, pode compor belas imagens e status para os homens modernos. Mais do que isso nunca será além da Natureza e o instinto de controle.  A burocracia é uma palavra oca. (Ser oco não é ser vazio)
Neste caso, a burocracia cabe uma infinidade de problemas grotescos, permeando a vida dos homens, principalmente para os que vivem afoitos nas grandes cidades. A burocracia preenche a vida das pessoas  como se fosse a última alternativa existencial possível.  Descobri então, que a burocracia é uma solução apenas para os que não precisam dela. Quando precisei de um pouco de humanidade e não mais papel, ramais, carimbos e assinaturas, eu fiquei só.
Em uma tentativa de alegria e abnegação já desvirtuei a burocracia.  Em outras palavras, já fui salvo e salvei por uma mentira. Mas agora, não há solução que seja a última saída. A vida precisa ser contida pela borda e nesta perfeita e sadia hora eu me apoiei na calçada! Sentei.  Fiquei preso com o corpo atado e o pensamento era minha mobilidade. Não era possível refletir já que o pensamento me conduzia ao desalento: a morte nos aproxima do que somos e nos afasta do que temos. 

                                                                              (A pedra e o tato)
  A sabedoria da vida consiste em não saber nada dela. Tanto conhecimento me fez fútil frente à vida... Da vontade de dominar as palavras me perdi delas!  Onde dormem as palavras? De onde elas vêm? 
Mesmo dormindo tive insônia.  A semana passou para todos  e eu permaneci parado. O sono não tinha mais a função do reencontro.  O sono era o desligar de uma chave que alguém  ligava  indicando que começou mais um dia. Veja bem, e agora eu entendo,  até parado o corpo pede movimento.  Não há estagnação e quando faltam passos é sempre uma palavra que vem dá força, conforto  e abrigo ao corpo.  O corpo é o lugar dos afetos e é por isso que descobri: o sentido maior da existência é a Confiança. 
Hoje vivo porque fui perdoado e através do perdão dado a mim descobri mais sobre os homens: em nossa essência, somos mais fracos do que perversos.
 Lembrei da passagem em que Pedro representou toda a essência da animalidade hominal e Cristo apenas amou. Amou de boca fechada. A partir daquele dia, Pedro superou a existência para tornar-se Pedro-Rei e tudo isso me confortou.  (qual é o sentido da frustração senão escalar um novo céu?)
Daquele dia em diante (do meu perdão e do perdão de Pedro) vivenciei que o homem é o que aparenta ser e também dimensões veladas rumo à perfeição.  

                                                                              (A retina filtra em silêncio)
Não faltaram forças para os primeiros passos. A calçada que me abrigou em silêncio poderia desenrolar crônicas e crônicas sobre a experiência dela. Entretanto, me entregou o silêncio.  As ruas estão doentes.  As estradas viajam paradas e levam os homens a lugares já conhecidos e eu quero o escondido da vida. Aventuro-me pelos mistérios numa peregrinação ao precipício de mim mesmo. A um passo do abismo eu ouço aos ecos os convites para a Glória. Já não me encontrava mais onde estava e devo o conforto da esperança anunciada pelo silencio entregue à mim pela calçada.
Será a vida uma grande cópia? Onde olho vejo encenação.  O que seria de mim se ao silêncio entregue, ela mostrasse o medo da vida e a imutabilidade das coisas? 

                                                                              (Inspiração vibrando)
Se nas calçadas vejo indiferença e solidão coletiva também posso ver cortejo e procissão.
O que direi aos meus olhos ver? O que direi a minha consciência obedecer?
Cada um segue rumo ao seu cortejo, indiferença ou solidão.  Eu sigo vivo pela certeza que me desobedece.  
Há mais que um lado nas ruas? Há mais vida, além do silêncio nas palavras? ( as palavras dizem nada e nós significamos tudo)
As cores da vida são tudo, até o silêncio nos olhos: um capítulo reinventado.


terça-feira, 12 de março de 2013

Ficções que curam



No banheiro meu olhar era a alma do espelho. O barulho da torneira e o som incongruente que não passava pelos sentidos mostrava que ainda estava vivo e triunfante ao abrigo da fantasia, a única realidade que me ultrapassa e me resgata. 

O Céu estava baixinho e ao alcance dos meus olhos. Ouvia-O rezando caridades ao solo dos homens e tamanha piedade por nossa condição, fez com que a  bananeira do quintal ensaiasse as primeiras mudas, após um longo tempo de estiagem.  Será toda Realidade que chovia ou o Céu que lastimava em prantos pelos pecados dos homens sem O entender? Onde poderia caber tanta ambiguidade? Não bastassem as rosas coloridas no jardim, eu ainda queria explicação para tanto?

Abençoava a pele tostada do pão com margarina saboreando as lembranças dentro de um curto espaço de pensamento. O café, solução para noites bem dormidas, aliviava a pressão que era iniciar mais um dia. Entre tantas alegorias, não havia tempo para fingir ser feliz ou acariciar o semblante amargo das tristezas. Eu precisava me abrigar no manancial em que tudo poderia ser a gênese da reintegração, a sabedoria que reside na santidade esquecida.  Fui lançado ao mundo como um ser inteiro e quando caí me despedacei. Entretanto, senti que seria preciso recolher os cacos e constituir meu triunfo! 

Passei anos constituindo uma imagem do eu-vazio e meu único medo era não saber fechar os olhos. O silêncio pode sustentar a salvação. Descobri isso ao entender que o esplendor de se sentir vivo é meditar; entendimento que brota das raízes rudimentares e evolutivas do homem. 

Escolhi aquele emprego que me tomava as manhãs,as tardes e os pensamentos. Todo dia não era só mais um dia porque tinha o dia do final do mês.
Nunca quis senão o que quiseram por mim e o mundo poderia ser redondo ou quadrado que não saberia me diferenciar de um rinoceronte ou de uma vaca. Eles são inconscientes quanto aos desejos e eu quanto aos impulsos. Estava tão dócil como um cachorro que perdeu seu instinto e hoje ao comer comida enlatada, permanece indiferente à sua natureza. Não me reconhecia quanto ao mundo, e por mais que odiasse aquele trabalho, aquela rotina, nunca suspeitei o porquê da vida se resumir em 8 ou até 13 horas diárias. Estava adestrado e sem desconfiança. O tempo era curto demais, o dia era longo demais.

Lembro-me de quando meu filho nasceu. 

Por conta das reuniões “inadiáveis” contratei um profissional para acompanhar minha esposa aos exames. Batalhei para conseguir um convênio médico que resguardasse minhas inquietações por não estar com eles. Aquela tinha sido uma batalha solitária, mas o antigo chefe do RH devia um favor para mim e contanto que eu ficasse de boca fechada, ele faria a alteração do plano “ só para mim”. 

Eu sei que o Sindicato deveria ficar sabendo e aquela ser uma conquista de todos, eu sei. Mas eu não conseguia pensar em nada além de mim. Uma semana antes do nascimento fui convocado para uma reunião “inadiável” em uma das 13 filiais da empresa, mais especificamente em Recife. Na época, o RH da empresa entoava como mantras que o objetivo de cada um era vestir a camisa de empresa e que o setor estava ali justamente para valorizar e reconhecer os talentos individuais. Fizeram com que eu me sentisse tão importante com tudo aquilo que resolvi ir à reunião. Voltei da reunião e meu filho estava fora da barriga, há 15 dias! 

A pauta da reunião centrava-se em abordar a redução de gastos e medidas administrativas. A primeira alternativa a ser tomada foi a terceirização dos funcionários. Alguns dias depois eu estava no RH, rodeado pelas  mesmas pessoas que pediram para eu vestir a camisa da empresa. Agora elas estavam rasgando a camisa, a minha camisa. 

Descobri o meu valor como o sol que tem a escuridão no encalço. (A burocracia é a face que sorri com os dentes do demônio.)

Recordar e renascer: era preciso. 
 
Adormeci logo que cheguei em casa. Meu corpo estava vivo e florescente. Reconheci no ar o suspiro da perfeição e nas pequenas coisas o prodígio de pertencer a si mesmo.
Estava nu em tempos de guerra. Minha alma estava perdida, mas lúcida de que em apenas um lugar não haveria de encontrar  o retorno à súplica dirigida ao Senhor dos Céus. A sabedoria não reside na autocompaixão e sofri até entender que o recomeço é sempre um bom lugar para se visitar.

A dificuldade é a esquina de uma avenida maior chamada Vida.

Adormeci profundamente.

Reconheci o sono, o sonho e a urgência.

No dia seguinte após o café preto (plenitude do mundo) e o pão com margarina na chapa (guarda-roupa de sabores) pensei: como deve ser serena a condição de olhar para trás e ver que a vida não sobrou.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Sobre o choque, a dissolução, o renascimento e o sentido da vida.




A vida é decisão preliminar.

Perdido entre as nuvens da manhã, que brilhavam o verde flamejante do
desencanto tardio, não fazia Sol em mim. Eu era branco (sem Sol) e linha. 

  O sentido de cada linha era ser página e o ritual sagrado deste tema era latente: seguir da iniciação ao verbo-carne. 

   A minha jornada era áspera, fugidia e opaca. Não se vê o futuro sem acender as luzes da eternidade enquanto presente. Para isso, aprendi que o tempo nada mais é que uma relação que você tem consigo mesmo. Antes de entender isso, o relógio seguiu muito tempo como algoz. Hoje, é adorno. 

 A minha adoração era o palco de representações que institui como essência criadora. Minha mão precisava acenar a partida e meus pés marcarem as pegadas do recomeço. Recomeço enquanto essência que nutre e enquanto nutre arde. Enquanto descobria o mundo pelo avesso,  sentia o calor da noite acesa, torturante, pois era ali, sozinho, que a aventura saía do coletivo e emoldurava-se para o individual. 

 A noite continuava acesa e gotejando rancores em lugares específicos do meu coração. Sabia que a maldade era impura, mas era o rancor vivo, que me conduzia sempre um passo para trás. O rancor é o reviver um olhar sombrio. 

Neste caminhar eu tinha certeza de que para andar para frente, seria preciso  enfraquecer o peso extra que vinha com os rancores e estabelecer a linha que me fizesse voar com a vida. Porém, para tudo que não temos certeza, temos o tempo certo, o momento sadio.

A alegoria desta infinitude é a paz. O momento sadio é aquele temperamento forte que arranca os rancores ( ervas - daninhas do coração) e apresenta a paz como evidência do esforço de permanecer lúcido e preparado para o encontro consigo mesmo. A paz incandescente não nos faz solitários e apresenta a inquietude floral como portal para o amanhã. A verdadeira paz é um livro de suavidade aberto e que te afasta das ilusões. 

Tudo que é vendido em forma de paz é sombra, sombra de uma paz obsoleta.

Ainda no caminho áspero, tive contato com algumas verdades rudes, gestos do pensar-falho. Sentia que estava cada vez mais próximo do abismo, e as saídas nunca seriam fáceis de encontrar. Cada auto-pergunta era um convite à reflexão e cada pergunta plantava em mim uma viga de um novo edifício forjado à fogo e marteladas. Sim, era um edifício novo arquitetado de dentro para fora erradicando as imperfeições do solo, que duraram, imperfeitamente, uma vida toda até aqui. As imperfeições paralisantes são vícios e vícios são palácios construídos em lugares errados. 

Além das imperfeições, também havia mofo.  Tudo que estava mofado era apenas falta de abertura, uma janela para o Sol. 

O abismo nunca esteve tão familiar. Não me preocupava mais em buscar entradas ou saídas porque tudo eram entradas e saídas, e depois do desespero, Gratidão. 

Ao mesmo tempo em que enfraquecido pela consciência, estava renovado. Foi preciso estender minha mão à Gratidão que rogava em silêncio por mim. Foi aí que entendi que a vida é decisão preliminar porque a vida é um susto. A vida começa antes de você ter consciência e proclamar que existe. 

 As palavras-mestres da Gratidão impregnaram meu corpo, agora um só. Elas também soavam familiares. Reconheci que sempre estiveram lá e apenas eu não aceitei, porque quem aceita a mentira nunca reconhece o bom, o pleno e o novo. 

Retomei o domínio da minha própria história. 

Após desenterrar as aberrações (sem violência. A violência é a linguagem dos fracos)  reconheci a Redenção, intercedendo às loucuras do meu próprio ser. Agora, eu era o que deveria ser: transparente. 

Ser transparente é entender os abismos e reinos da nossa existência e compreender que nunca deveriam causar guerra, nem devastação interna. Viver apenas pelo desejo é ser unilateral: a essência é só o fim do fracasso quando cai a aparência.

Corri.

Era mais que preciso correr. 

O dia era 31 e o ano antigo estava para vencer.

Corria, mas movia a mente com calma: o mosaico era a Grande obra e eu precisava continuar recolhendo os cacos.


Foi preciso destronar a ordem e assumir em cada grão de beleza, ainda invisível, que este ano tenha tudo para ser o ano dos mosaicos de sonhos férteis. 

É preciso. É sempre preciso.