quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O mistério da goiabeira



Naquela manhã não fiz o café. Apenas troquei a água do bebedouro para o beija-flor flutuar seus encantos. Na mesa, apenas o tampo de vidro e o IPVA aberto: “ Senhor caixa: este aviso é meramente informativo NÃO AUTENTICAR”.  São esses hábitos que me constrangem e me jogam no tempo. Na mesa não havia pão, café, frutas...Apenas o lembrete de pagar, um exercício contra a aparição da simplicidade.  Avisos como este me deixam em dúvidas constantes entre hábitos humanos ou lampejos de uma simples aparição em corpo.
Da vida se leva o que não se autentica. O hoje e o amanhã serão apenas opções.
Compreendo a delicadeza dessas questões e quanto mais ao Norte se avança a longo dos anos, mais específica é sua sede: de água, de água gelada, de mineral, de nuvem...
Longe do alcance da cozinha uma goiabeira no quintal sorri. Avancei até lá e sob seus galhos surgiu um terraço de folhas e palhas delicadamente trançadas para se vencer o horizonte  daqueles valores letárgicos.  A pulsação de seu coração irradia pequenos seres animados que flutuam e inflam notas de coragem e peregrinação. Adormeci.  O prolongamento de seus galhos acalmou meu impulso de partir, porém sem severidade.  Uma voz que brotava do solo e irradiava consolação disse em sentido íntimo: “ A essência do medo está no fato do homem ser um animal fugidio”.
Não consigo lembrar-me desta goiabeira em meu quintal. Entretanto, era uma goiabeira que prodigalizava outros frutos com outras histórias e contornos. Suas folhas translúcidas sopravam e perfumavam o ar como um ritual de pureza. 
Já não era manhã, ou noite. Tarde ou dia. Era apenas quintal. Os pequenos seres, que chamei de Argos, acabaram por inaugurar um novo vazio em que eu pudesse me projetar. Eu inaugurava perigos. Estava estampado em meu rosto o tentador poder da desistência e a tentação do retrocesso.  Sabia que não poderia voltar e isso me fortalecia. A medida que estas decisões eram tratadas eu era deslocado da realidade de onde apoiava os pés.  Um dos Argos, talvez se antecipando às minhas preocupações, disse em tom irônico:
- Bagagem? Leve apenas o que puder imaginar.
Se a certeza da volta era algo que eu não tinha, intuía que caso voltasse muito seria diferente. Eu sabia que não seriam apenas promessas, mas uma nova velocidade de acreditar.
Um silêncio universal tomou conta do meu coração.  Em companhia dos Argos, estávamos em um cemitério de relógios.  Lá, um galo afirmava ser o criador dos desertos e que poderia, caso quisesse – e ele afirmava ter razões para isso, transformar a vida dos homens em grãos de mostarda e depois em pó.  O galo dizia que muito das ilusões oficializadas em vida, vão parar ali depois.  
- Se você é um daqueles que está com o pensamento onde não está o corpo, posso eliminá-lo agora mesmo, disse  este ser enigmático que tinha olhos de quebrar datas.
Compreendendo o movimento da vida, o galo e um dos Argos disseram juntos, amenizando minha preocupação aparente:
-  A vida se renova na sombra!
Compreendi que a passagem pelo cemitério seria essencial, já que depois de algum tempo tive conhecimento de que antes de voltar para casa, seria necessário uma pausa e um regresso. Em um instante, compreendi o alerta do galo e o porquê estava naquele lugar.  Onde estive com a minha vida por todo este tempo? Realmente, os acontecimentos me levaram a estar com o pensamento muito além do meu corpo. Sempre fugidio do tempo, nunca estava realmente onde me encontrara.  
O tempo era marcado por uma experiência interna. Sentia que era preciso voltar, e antes de concluir o pensamento os Argos apareceram, juntamente com o galo. Como um presente sincero e um abraço afetuoso, recebi daquele ilustre guardião do cemitério um livro cujo título era “ Os símios e os homens que costuravam elefantes com memórias”.  Disse-me ele para manusear as páginas com cuidado, pois se tratava de um livro de tempos mitológicos e a minha maior façanha seria descobrir como aplicar os conhecimentos ali enunciados e transformar o cotidiano em grandes acontecimentos. Esta seria, segundo ele, a fórmula para a maior revolução de todas.
Meu pensamento era preguiçoso, mas já sabia onde estava. A fila andava lentamente e ao colocar a mão no bolso esquerdo, senti o IPVA no bolso, estava no banco. Ao retirá-lo para conferência, um papel caiu ao chão. Nele estava escrito:  “ Grandes revoluções começam com bom dia e um riso sincero, honesto e simples”.
A companhia tocou alto. Era meu número no visor. O caixa disse bom dia e estendeu a mão, para formalizar um prestativo cumprimento.  Eu apenas entreguei o IPVA.  Ao finalizar a transação ele me desejou um bom dia alegre. Eu continuei calado com as mãos conferindo o troco.
Na saída do banco, ao lado da calçada, uma árvore estava com as folhas no chão e praticamente deitada ao solo, devastada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário