Havia pensado em uma história simples, previsível e consumível.
Era o que eu fazia de melhor. Com o coração flutuante, só restava pensar em
histórias para preenchê-las de amor e fantasia.
Poderia ser a história de um casal
qualquer. Viveriam algum tempo separados pelo flagelo da guerra, fosse
nas Cruzadas ou na Guerra das Malvinas, e depois viveriam perseguindo o viver
ao sabor de suas próprias lembranças.
Precisava escrever, havia prazos para isso. O mundo profissionalizante é feito de prazos
e criatividades espremidas. Qualquer
história que me desse mais uma semana de
alívio, fosse ela de monstros ou de jardins.
Eu me vendi a isso, era o que me contentava.
O sentimento mais próximo de não existir é o de não ter
idéias. Fluía entre uma idéia e outra
com o lápis batendo na mesa e a mente em algum lugar, certamente não
comprometida com o prazo que já estava se esgotando. Ainda lembro-me do bilhete mal educado colocado
sobre a mesa: “No mundo profissional as pessoas cumprem prazos. Vou esperar o
material pronto até sexta-feira. Não escreva contos, quero um romance.” O nome
“Hélio” estava escrito com caneta vermelha e o
restante do texto em caneta preta, não entendi o porquê. Hélio era um grande amigo de meu pai, éramos
colegas até ele se tornar chefe. Antes,
compartilhávamos juntos o café da manhã
e em cada dia da semana, cada um da redação era responsável por trazer o pão, o
queijo e o salame. Nas proximidades do dia 30 o café da manhã sempre tinha bolo
e alguns brigadeiros, esticávamos o momento para celebrar os aniversariantes do
mês. Entretanto, ao exigir cada vez mais
de todos os fotógrafos, editores e jornalistas, os momentos de interação ainda
aconteciam, porém, cada vez menos.
Para mim, tudo mudou quando Hélio assumiu a chefia. Não
conseguia entender a relação dos fatos, mas este também foi o momento em que
não consegui mais produzir na escala esperada pela redação e no mesmo volume
que todos faziam com aparente normalidade. Outras coincidências factuais me atordoavam:
já estava para completar 6 anos na mesma função, alimentando a frivolidade que
é acordar cedo para realizar a mesma tarefa por cerca de 2190 dias, não
contando os domingos, feriados e apenas duas férias fruídas, já que a terceira
estava para vencer e o Hélio era convincente a fazer acreditar de que eu era
insubstituível em minha função.
Das Artes, a mais sublime certamente é o encontro de almas.
É um prolongamento de vida que faz abrir os olhos para o mistério de dois
pensamentos habitarem juntos, um mesmo instante, por um mesmo ideal utópico
comum. Não quero mais que a síntese de uma consciência plural a me mostrar que
na mutilação existente entre o “bem e o mal” pode existir a Arte e nisso há
elementos substanciais o suficiente para afogar o determinismo em um oceano
previsível e muito próximo da calmaria de uma zona abissal. Por ser um caminho
além da percepção, é preciso afirmar: o homem aberto à Arte é caminho.
Não quero a sorte do protagonista da novela. Eu quero é vida
real, sem espetáculos. Sentimento é coisa séria. Aliás, lembro-me que essa foi
uma das primeiras palavras que troquei com ela. Conhecê-la foi como um tiro de
canhão no peito. Importa na verdade é descobrir quantas pessoas você pode
conhecer realmente, em menos de um segundo, sem precisar dizer “oi”.
O melhor de tudo é que não se tratava do romance recém
inaugurado que não conseguia sair da página 1.
Para meu alívio, aquilo não era ficção, e sim o fluxo da minha vida com
silêncio, esperança e sem lógica. Os prazos se esgotavam, eu sabia, mas algo se
transformava em mim lentamente. Meu declínio profissional continuava
gradativo. Algo em mim tinha outros
anseios, mas onde começaria a primavera da minha ilusão? Precisava da ilusão
verdadeira, aquela que me faria romper com o cotidiano de apertar a mão de
todos, e esperar até sexta-feira para confidenciar à felicidade o quanto ela é
passageira.
Foi quando despertei e meu tempo estava entregue a ela. Ela
acolheu meu destino com olhos e boca e me levou até a liberdade que me entregaria.
Aquilo que eu não conhecia seria meu, talvez com pouco mais de tempo pudesse
ser nosso. O cotidiano não orquestrava
nada mais, além da espera.
8 horas diárias e 7 dias durante a semana interminável me devoravam sem que eu escrevesse uma linha a
mais . Entretanto, seu nome ainda era um passarinho a voar e a devolver música ao ruído solitário em que
viviam os homens, inclusive eu. Sabia
que viveria com ela um amor que não era de flores. Talvez um amor de estrelas e
outros mundos, já que ela tinha serenata nas palavras e fazia ser domingo toda
vez que sorria.
Permanecia na página um.
Percebi que as idéias não fugiam de mim, elas sabiam o caminho que eu deveria percorrer e me arrastariam, se
preciso fosse para, para um abrigo longe do meu dia-a-dia colérico, de face
sempre igual.
- Se o trabalho é coisa séria, o sentimento também é. Lembro-me da primeira vez que a conheci,
enquanto ela confidenciava ao telefone esta verdade para alguém. Seu perfume era
a rosa dos ventos da única convicção que tinha em mente: por ela, substituiria
todo determinismo pela Lei dos nossos
encontros. Ela vestia calça jeans e camiseta branca, com uma ecobag timidamente caída pelo ombro esquerdo. Assim
eram os dizeres da bolsa, provavelmente bordados à mão: “é possível viver em sonho
o truque da realidade”. Suas mãos bordavam toda caligrafia do encanto. Já amava sem conhecê-la, confidenciei sem demora a mim
mesmo. Estávamos na fila da mercearia, com o destino
ainda desconhecido entre nós. Meu único compromisso era o de comprar os pães de
queijo e o refrigerante para celebrar com a redação os aniversariantes do mês,
uma das poucas festas que a redação toda ainda poderia se reunir.
Quantas coisas damos importância e no final nos tiram a
vida? Não tive tempo para pensar no oposto dessa sentença. Após
uma semana, encontrei o bilhete do Hélio no fundo da gaveta. Às 7 da manhã ouvi Hélio chegando após
algumas pigarreadas pelo corredor da redação. Com o cigarro apertado no canto
da boca, fez um aceno com a cabeça. Seus olhos devoravam minha calma.
Uma angústia momentânea pairou sobre meus pensamentos, não
tivesse eu sido arrastado pela lembrança da noite anterior, que havia começado ao meio dia no parque. Comum,
não fosse ela me ensinar a olhar a vida com olhos de inventar realidades. Entre tantas confissões, revelou-me que as árvores tem sangue azul do tronco às
copas e que durante a noite, liberam do trabalho afortunado formigas e caracóis
para o mistério da cidade em que os carros dormem. Lembrei também da
possibilidade de segurar uma lagarta ( apenas as que não tem pelos) por 3
segundos para descobrir a essência das borboletas. Ela me ensinou que ter certeza é sentir.
Retornei ao mundo das angústias. Lembrei do tempo e do
prazo. Lembrei de uma vida não vivida.
Meu compromisso não era mais ser um fiel intérprete do
cotidiano. Pela primeira vez dizia EU sem contradição, nem boatos. Liberdade
significava ter me livrado do perigo de ser sempre o mesmo.
Pela necessidade de amar, amei o melhor de mim, nela. Pela
necessidade eu trabalhei inventando mentiras. Se hoje sei que a vida brota onde o sol bate,
sei que o amor é um pintor de lembranças
e isso bastaria se eu tivesse conseguido agradecê-la.
Ela daria importância?
Esperando a página 2 tá?!
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