No
banheiro meu olhar era a alma do espelho. O barulho da torneira e o som
incongruente que não passava pelos sentidos mostrava que ainda estava vivo e
triunfante ao abrigo da fantasia, a única realidade que me ultrapassa e me
resgata.
O Céu estava
baixinho e ao alcance dos meus olhos. Ouvia-O rezando caridades ao solo dos
homens e tamanha piedade por nossa condição, fez com que a bananeira do
quintal ensaiasse as primeiras mudas, após um longo tempo de estiagem.
Será toda Realidade que chovia ou o Céu que lastimava em prantos pelos
pecados dos homens sem O entender? Onde poderia caber tanta ambiguidade? Não
bastassem as rosas coloridas no jardim, eu ainda queria explicação para tanto?
Abençoava
a pele tostada do pão com margarina saboreando as lembranças dentro de um curto
espaço de pensamento. O café, solução para noites bem dormidas, aliviava a
pressão que era iniciar mais um dia. Entre tantas alegorias, não havia tempo
para fingir ser feliz ou acariciar o semblante amargo das tristezas. Eu precisava
me abrigar no manancial em que tudo poderia ser a gênese da reintegração, a
sabedoria que reside na santidade esquecida. Fui lançado ao mundo como um
ser inteiro e quando caí me despedacei. Entretanto, senti que seria preciso
recolher os cacos e constituir meu triunfo!
Passei
anos constituindo uma imagem do eu-vazio e meu único medo era não saber fechar
os olhos. O silêncio pode sustentar a salvação. Descobri isso ao entender que o
esplendor de se sentir vivo é meditar; entendimento que brota das raízes
rudimentares e evolutivas do homem.
Escolhi
aquele emprego que me tomava as manhãs,as tardes e os pensamentos. Todo dia não
era só mais um dia porque tinha o dia do final do mês.
Nunca quis
senão o que quiseram por mim e o mundo poderia ser redondo ou quadrado que não
saberia me diferenciar de um rinoceronte ou de uma vaca. Eles são inconscientes
quanto aos desejos e eu quanto aos impulsos. Estava tão dócil como um cachorro
que perdeu seu instinto e hoje ao comer comida enlatada, permanece indiferente
à sua natureza. Não me reconhecia quanto ao mundo, e por mais que odiasse
aquele trabalho, aquela rotina, nunca suspeitei o porquê da vida se resumir em
8 ou até 13 horas diárias. Estava adestrado e sem desconfiança. O tempo era
curto demais, o dia era longo demais.
Lembro-me
de quando meu filho nasceu.
Por conta
das reuniões “inadiáveis” contratei um profissional para acompanhar minha
esposa aos exames. Batalhei para conseguir um convênio médico que resguardasse
minhas inquietações por não estar com eles. Aquela tinha sido uma batalha
solitária, mas o antigo chefe do RH devia um favor para mim e contanto que eu
ficasse de boca fechada, ele faria a alteração do plano “ só para mim”.
Eu sei que
o Sindicato deveria ficar sabendo e aquela ser uma conquista de todos, eu sei.
Mas eu não conseguia pensar em nada além de mim. Uma semana antes do nascimento
fui convocado para uma reunião “inadiável” em uma das 13 filiais da empresa,
mais especificamente em Recife. Na época, o RH da empresa entoava como mantras
que o objetivo de cada um era vestir a camisa de empresa e que o setor estava ali
justamente para valorizar e reconhecer os talentos individuais. Fizeram com que
eu me sentisse tão importante com tudo aquilo que resolvi ir à reunião. Voltei
da reunião e meu filho estava fora da barriga, há 15 dias!
A pauta da
reunião centrava-se em abordar a redução de gastos e medidas administrativas. A
primeira alternativa a ser tomada foi a terceirização dos funcionários. Alguns
dias depois eu estava no RH, rodeado pelas mesmas pessoas que pediram para eu vestir a
camisa da empresa. Agora elas estavam rasgando a camisa, a minha camisa.
Descobri o
meu valor como o sol que tem a escuridão no encalço. (A burocracia é a face que
sorri com os dentes do demônio.)
Recordar e renascer: era
preciso.
Adormeci
logo que cheguei em casa. Meu corpo estava vivo e florescente. Reconheci no ar
o suspiro da perfeição e nas pequenas coisas o prodígio de pertencer a si
mesmo.
Estava nu
em tempos de guerra. Minha alma estava perdida, mas lúcida de que em apenas um
lugar não haveria de encontrar o retorno à súplica dirigida ao Senhor dos
Céus. A sabedoria não reside na autocompaixão e sofri até entender que o
recomeço é sempre um bom lugar para se visitar.
A dificuldade
é a esquina de uma avenida maior chamada Vida.
Adormeci
profundamente.
Reconheci
o sono, o sonho e a urgência.
No dia
seguinte após o café preto (plenitude do mundo) e o pão com margarina na chapa
(guarda-roupa de sabores) pensei: como deve ser serena a condição de olhar para
trás e ver que a vida não sobrou.
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