sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Página 1



Havia pensado em uma história simples, previsível e consumível. Era o que eu fazia de melhor. Com o coração flutuante, só restava pensar em histórias para preenchê-las de amor e fantasia.  Poderia ser a história de um casal  qualquer. Viveriam algum tempo separados pelo flagelo da guerra, fosse nas Cruzadas ou na Guerra das Malvinas, e depois viveriam perseguindo o viver ao sabor de suas próprias lembranças.  Precisava escrever, havia prazos para isso.  O mundo profissionalizante é feito de prazos e criatividades espremidas.  Qualquer história  que me desse mais uma semana de alívio, fosse ela de monstros ou de jardins.  Eu me vendi a isso, era o que me contentava.

O sentimento mais próximo de não existir é o de não ter idéias.  Fluía entre uma idéia e outra com o lápis batendo na mesa e a mente em algum lugar, certamente não comprometida com o prazo que já estava se esgotando.  Ainda lembro-me do bilhete mal educado colocado sobre a mesa: “No mundo profissional as pessoas cumprem prazos. Vou esperar o material pronto até sexta-feira. Não escreva contos, quero um romance.” O nome “Hélio” estava escrito com caneta vermelha e o  restante do texto em caneta preta, não entendi o porquê.  Hélio era um grande amigo de meu pai, éramos colegas até ele se tornar chefe.  Antes, compartilhávamos  juntos o café da manhã e em cada dia da semana, cada um da redação era responsável por trazer o pão, o queijo e o salame. Nas proximidades do dia 30 o café da manhã sempre tinha bolo e alguns brigadeiros, esticávamos o momento para celebrar os aniversariantes do mês.  Entretanto, ao exigir cada vez mais de todos os fotógrafos, editores e jornalistas, os momentos de interação ainda aconteciam, porém, cada vez menos.

Para mim, tudo mudou quando Hélio assumiu a chefia. Não conseguia entender a relação dos fatos, mas este também foi o momento em que não consegui mais produzir na escala esperada pela redação e no mesmo volume que todos faziam com aparente normalidade. Outras coincidências factuais me atordoavam: já estava para completar 6 anos na mesma função, alimentando a frivolidade que é acordar cedo para realizar a mesma tarefa por cerca de 2190 dias, não contando os domingos, feriados e apenas duas férias fruídas, já que a terceira estava para vencer e o Hélio era convincente a fazer acreditar de que eu era insubstituível em minha função. 

Das Artes, a mais sublime certamente é o encontro de almas. É um prolongamento de vida que faz abrir os olhos para o mistério de dois pensamentos habitarem juntos, um mesmo instante, por um mesmo ideal utópico comum. Não quero mais que a síntese de uma consciência plural a me mostrar que na mutilação existente entre o “bem e o mal” pode existir a Arte e nisso há elementos substanciais o suficiente para afogar o determinismo em um oceano previsível e muito próximo da calmaria de uma zona abissal. Por ser um caminho além da percepção, é preciso afirmar: o homem aberto à Arte é caminho.
Não quero a sorte do protagonista da novela. Eu quero é vida real, sem espetáculos. Sentimento é coisa séria. Aliás, lembro-me que essa foi uma das primeiras palavras que troquei com ela. Conhecê-la foi como um tiro de canhão no peito. Importa na verdade é descobrir quantas pessoas você pode conhecer realmente, em menos de um segundo, sem precisar dizer “oi”.  

O melhor de tudo é que não se tratava do romance recém inaugurado que não conseguia sair da página 1.  Para meu alívio, aquilo não era ficção, e sim o fluxo da minha vida com silêncio, esperança e sem lógica. Os prazos se esgotavam, eu sabia, mas algo se transformava em mim lentamente. Meu declínio profissional continuava gradativo.  Algo em mim tinha outros anseios, mas onde começaria a primavera da minha ilusão? Precisava da ilusão verdadeira, aquela que me faria romper com o cotidiano de apertar a mão de todos, e esperar até sexta-feira para confidenciar à felicidade o quanto ela é passageira.
Foi quando despertei e meu tempo estava entregue a ela. Ela acolheu meu destino com olhos e boca e me levou até a liberdade que me entregaria. Aquilo que eu não conhecia seria meu, talvez com pouco mais de tempo pudesse ser nosso.  O cotidiano não orquestrava nada mais, além da espera.

8 horas diárias e 7 dias durante a semana interminável  me devoravam sem que eu escrevesse uma linha a mais . Entretanto, seu nome ainda era um passarinho a voar  e a devolver música ao ruído solitário em que viviam os homens, inclusive eu.  Sabia que viveria com ela um amor que não era de flores. Talvez um amor de estrelas e outros mundos, já que ela tinha serenata nas palavras e fazia ser domingo toda vez que sorria.
Permanecia na página um.  Percebi que as idéias não fugiam de mim, elas sabiam o caminho que  eu deveria percorrer e me arrastariam, se preciso fosse para, para um abrigo longe do meu dia-a-dia colérico, de face sempre igual.  
- Se o trabalho é coisa séria, o sentimento também é.  Lembro-me da primeira vez que a conheci, enquanto ela confidenciava ao telefone esta verdade para alguém. Seu perfume era a rosa dos ventos da única convicção que tinha em mente: por ela, substituiria todo determinismo  pela Lei dos nossos encontros. Ela vestia calça jeans e camiseta branca, com uma ecobag  timidamente caída pelo ombro esquerdo. Assim eram os dizeres da bolsa, provavelmente bordados à mão: “é possível viver em sonho o truque da realidade”. Suas mãos bordavam toda caligrafia do encanto.  Já amava sem  conhecê-la, confidenciei sem demora a mim mesmo.   Estávamos na fila da mercearia, com o destino ainda desconhecido entre nós. Meu único compromisso era o de comprar os pães de queijo e o refrigerante para celebrar com a redação os aniversariantes do mês, uma das poucas festas que a redação toda ainda poderia se reunir.
Quantas coisas damos importância e no final nos tiram a vida? Não tive tempo para pensar no oposto dessa sentença.   Após uma semana, encontrei o bilhete do Hélio no fundo da gaveta.  Às 7 da manhã ouvi Hélio chegando após algumas pigarreadas pelo corredor da redação. Com o cigarro apertado no canto da boca, fez um aceno com a cabeça. Seus olhos devoravam minha calma.

Uma angústia momentânea pairou sobre meus pensamentos, não tivesse eu sido arrastado pela lembrança da noite anterior, que  havia começado ao meio dia no parque. Comum, não fosse ela me ensinar a olhar a vida com olhos de inventar realidades.  Entre tantas confissões, revelou-me  que as árvores tem sangue azul do tronco às copas e que durante a noite, liberam do trabalho afortunado formigas e caracóis para o mistério da cidade em que os carros dormem. Lembrei também da possibilidade de segurar uma lagarta ( apenas as que não tem pelos) por 3 segundos para descobrir a essência das borboletas.  Ela me ensinou que ter certeza é sentir.

Retornei ao mundo das angústias. Lembrei do tempo e do prazo. Lembrei de uma vida não vivida.
Meu compromisso não era mais ser um fiel intérprete do cotidiano. Pela primeira vez dizia EU sem contradição, nem boatos. Liberdade significava ter me livrado do perigo de ser sempre o mesmo.  
Pela necessidade de amar, amei o melhor de mim, nela. Pela necessidade eu trabalhei inventando mentiras.  Se hoje sei que a vida brota onde o sol bate, sei que o amor é um pintor de lembranças  e isso bastaria se eu tivesse conseguido agradecê-la.  

Ela daria importância?


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Frente




O caminho que mistura as pessoas na rua é frente.
A frente é dita pelo direito à ignorância para questionar.
Todo ritmo de luz e sombra
e os alertas das ruas também podem ser vistos como manifestações do subúrbio da mente.

Todas as esquinas são frente
os becos e vielas são frente
o chão de terra não é mais solitário
 e todos os postes da rua são lua
quando olhar que supera a realidade
é frente.

Todas as pessoas de placas nas mãos são frente.
São estrelas que saíram do céu
e aos primeiros raios da manhã
inauguraram a frente das ruas.

As marcas do sofrimento histórico
são frente
mas, não guardam mágoas.
É preciso aprender com o que a história conta.

Quem alimenta ódio e rancor são velhos latifundiários
com demarcações e espingardas em mãos
que presenteiam a humanidade com feridas
 oceanos de sangue.
Grileiros que afogam semelhantes em carne em intensa agonia
fogo cruzado queimando flechas ,doces e mandiocas
Assim ergueram mansões
de bolso saciado pelo despotismo
que impõe estátuas e descampados
justificado pela ganância errante da pecuária.
Estes foram os descobridores da miséria
senhores de chapéus e soldados
senhores de barbas, motoristas e muitas madames.
Miséria de punhal e petróleo
miséria que varreu as ruas enquanto eram terras
sem árvores
apenas jazidas de choro de terra.

Enquanto não era sóbrio
não ouvia a terra
ela chorava.

No escuro do sofá e revistas
encontramos o que escondiam
 frente são todos os lados que protagonizam uma história
mesmo que no caminho não haja lâmpada
apenas consciências a brotar.


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Instantâneos sobre a espera


A espera é a disciplina das coisas em sua latência:
é a inexplicável coragem das horas.

*

A espera é o tempo que permanece e frutifica:
para nascer o que são flores não basta apenas a semente.

*

A espera constitui uma vida não vivida que atravessa nosso íntimo:
é a entrega às razões da vida.
 *

A espera é o desconhecido que guia nossos passos:
é a assinatura da maturação humana.

*

A espera é uma história universal.




quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Hortelã

Respira a ternura
 independência da alma
sua arte é destino,
consolo de ondas e velas
assim nasceu a consagração dos vivos:
alívio para os que  caminham, sem saber onde pisam
suplício!
 Aflitos, não sabem para quê trabalham
vampiros!
Não percebem os pulmões feridos
rendidos à pátria de nó e cabide
pedaços de corações partidos.

Seu respirar é florescimento vivo
saliva que cicatriza e cura
frescor do mar em folhas
destino que cruza
moradas e peitos
algum lugar mentolado.
É bala
é terra doce
é caramelo esfriando na pia
é eterno bálsamo de vaso
tem a digital de todas as avós do mundo nas folhas.


O homem como seu maior abrigo
peito cheio
infinito
infinitos.

Nuvens de rosas frescas
assim nasceu a consagração da plenitude:
hortelã é abraço amigo
seu silêncio é amanhecer que fala
histórias antes de dormir.

domingo, 4 de agosto de 2013

O casal de borboletas



Conversa nossa começou assim:
- a sorte é um ato nobre, um afago do mundo
e você
é tão linda como a princesa Mononoke.

Menina bonita
que não é merecedora de elogios
o que sabe você da linha que corta a palma da minha mão direita?
Você que não acredita em coincidências
porque é uma palavra engraçada demais
devolve o silêncio
em atmosfera de descoberta
martelando sílabas de amor ao engano.

São os chacras que lhe causam vertigem ao amor?
O coronário, o frontal, o raiz...
O que dizer do meu Saturno em Sagitário?

Menina bonita
em qual Astrologia está aceso nosso caminho?
Em qual dos destinos reinará o Tarot?

Menina bonita
a tristeza é a mãe de todos os encontros.
(eu sofro por saber que você já sofreu)
pela tristeza as estrelas rasgam a noite
e um pedaço do sorriso celestial
te abraça com calma.

Menina bonita
toda travessia noturna
é um regresso ao medo
ou à luz doce que nos faz sonhar:
em cada instante somos um futuro diferente
em sonho, meu coração buscará o seu.

Menina bonita
minhas mãos cairão sobre ti
perseguirão tua humildade tardia.
Minhas mãos são poemas exilados que escrevem:
“Dias são aqueles que virão”.

Menina bonita
você ri
eu respiro:
são borboletas que se encontram.